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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Votação democrática: tem a certeza?

Tema
A vida é um sistema complexo com vários processos que se interpenetram. O ser humano é um ser complexo por natureza e os seus grupos ainda são mais. Neles nada é simples.

A Democracia é um processo humano grupal, portanto, por essência é complexa. Querer geri-la com métodos primários "...eu mando e tu obedeces..." e com estratégias de "palonços de feira" é tão parvo como querer tocar piano com luvas de box:


ou seja, ouvem-se ruídos mas não se podem tocar sinfonias.

Uma das principais características dos sistemas complexos são as consequências inesperadas de causas desprezáveis ou, como diz a teoria do caos, "...se uma borboleta bater asas no Japão pode provocar um tornado no Texas".

Na Democracia, um bater de asas da estupidez de "...pensar óbvio no complexo" pode provocar um tornado de estragos relevantes.

ÍNDICE
I   -  Introdução
    - A trilogia
II  - O outro
III - O projecto
IV- O consenso
V - Conclusão

I - Introdução

Segundo a teoria dos sistemas, o sistema de controlo tem sempre que ser mais complexo que o sistema controlado. Querer gerir a Democracia com processos simples e primários é como brincar com fogo no meio de gasolina,... não é aconselhável.

Diagnósticos "óbvios" de sistemas complexos baseiam-se no nível imediato de observação (o óbvio), isolando-se dos níveis mais "profundos" e com efeitos significativos.

A realidade como complexidade pode ser vista como um conjunto de complexidades dentro umas das outras. Numa analogia simplificada, é como se fosse uma série de caixas chinesas encaixadas umas dentro das outras, todas interdependentes. Mantendo a analogia, a Ciência seria a aventura de as "bisbilhotar", caminhando para o seu interior:

A Ciência descobrindo a realidade
Como exemplo, desde o pensar pré-histórico baseado no óbvio imediato, que possibilitou a descoberta da roda, até ao pensar quântico aplicado no laser e relógios atómicos, muito se alterou no pensar e nas decisões civilizacionais.

Pensar a democracia é um processo semelhante. A sua complexidade obriga a sair do pensar primitivo de aproveitar o óbvio nas suas soluções de "vistas curtas"...


...e procurar as potencialidades existentes nos seus universos, ou melhor, multi-versos interiores (layers). Na verdade, todos eles estão inter-conectados e são inter-influenciáveis, funcionando como "gatilhos" (triggers) uns dos outros, provocadores de efeitos apreciáveis. 

Não basta "fazer democracia" é preciso avaliar consequências "colaterais e clandestinas" dos vários "layers" e que são susceptíveis de destruir o que se pretende alcançar. 


Trilogia

Numa votação democrática, há três áreas cuja dinâmica interna pode ocasionar estes efeitos negativos ou positivos no resultado eleito:



II - O outro

Segundo Carlo Maria Cipolla (Prof. de História Económica, Univ. Berkeley) em "Allegro, ma non troppo" (Ed. Celta, Oeiras, 1993) existem leis que enquadram a estupidez humana na sua relação com o outro, cujo modelo pode ser expresso num sistema de dois eixos:

eixo do "x"- consequências PARA SI: positivas (vantagens) ou negativas (prejuízos);
eixo do "y"- consequências PARA O OUTRO: positivas (vantagens) ou negativas (prejuízos)


definindo assim 4 quadrantes (x,y), A (+,+), B (-,+), C (+,-), D (-,-):


É importante salientar que o positivo e o negativo têm sempre que ser definidos pelos próprios.

Como exemplo, uma bofetada "educativa" pode ser considerada positiva por quem a dá, quer para si (como dever) quer para quem a leva (como aprendizagem). Todavia, quem a sofre pode considerá-la negativa para si (como dor) e para quem a dá (crueldade).

Do mesmo modo nas eleições, um projecto pode ser considerado pelo governo como positivo para si (por governar bem) e para os cidadãos (para serem bem governados), todavia os cidadãos podem considerará-lo negativo para ambos (mal governados e por incompetentes).  

Como resumo, no caso da Democracia o modelo ficará:


Em conclusão, as votações democráticas devem sempre considerar a zona relacional dos efeitos produzidos, de modo a existirem dentro da Zona [A] (+,+), correspondente à Democracia. 

Por exemplo, um projecto de implantação de austeridade (mesmo com aumento diferenciado de impostos) pode ter consequências diferentes em dois cidadãos (Manuel e António):


ou seja, o equilíbrio contributivo do cidadão António e do cidadão Manuel são distintos. O resultado dos três factores:

- a percentagem de desconto;
- as vantagens sociais para o conjunto dos cidadãos;
- prejuízos individuais para os cidadãos António e Manuel;

localizam-se em áreas diferentes. 

O António estará em [B1], ou seja, numa área de sacrifício aceitável, com vantagens comunais e prejuízos individuais relativamente suportáveis, muito perto da fronteira com a zona [A] (+,+). Na prática, com os seus 30% de descontos,  ele fica com 21.000€/mês para sobrevivência com sua família.

O Manuel ficará na [C2]isto é, numa área de sacrifício insustentável a nível individual e com vantagens comunais nulas e já na fronteira com a zona de estupidez democrática, [D] (-,-).
Na prática, com os seus 15% de descontos, ele fica com 425€/mês para sobrevivência com sua família.

As acções na zona [D], chamada de estupidez porque todos perdem e na zona [C], considerada de fraude porque um ganha e todos perdem, por muito legalidade democrática que tenham, são nítida e legitimamente anti-democráticas. 
Como exemplos vulgares destas duas zonas, encontram-se certos jogos financeiros de "predadores" sociais consentidos e "negócios" de destruição ambiental ou social ou saúde de "canibalismo" económico, muito noticiados no mass-média.

As votações democráticas para serem válidas devem significar opções existentes na zona "+,+".


III - O projecto

Qual a diferença entre uma tigela e um telemóvel???


Há várias diferenças mas, na perspectiva de um projecto democrático, há uma que é fundamental.
Ab initio (a partir do zero), um técnico sabe fazer uma tijela e nenhum técnico sabe fazer um telemóvel.

Isto quer dizer que um indivíduo isolado consegue produzir e utilizar o objecto "tigela". É um objecto de produção e uso "solitário"(individual kind).

Porém, o objecto "telemóvel" é constituído por centenas de peças diferentes, cada uma produzida por indivíduos com competências diferenciadas (plástico, chips, processadores, etc) que necessitam de quem as sabe integrar e, possivelmente, não sabe construir nenhuma delas.

Depois de pronto, se só existir um, não serve para nada. Ele necessita de ter uma posse social, isto é, existirem vários indivíduos a possuírem-no. O seu valor está em não ser exclusivo de ninguém mas generalizado por muitos e quanto maior for a generalização maior será seu o valor.

Mesmo na situação anterior, ele não servirá para nada se não existirem redes pois, sem elas, o telemóvel valerá tanto como um "calhau engraçado".
Mesmo com as situações anteriores resolvidas, ele ainda não terá qualquer utilidade se não existir acção social de ensino da sua utilização.

Em resumo, ele não é um objecto de fabrico e uso privado, mas sim de produção e uso "comunal (social kind), mesmo que seja só com apoios indirectos e à distância, como por exemplo:


Por outras palavras, é sempre preciso o apoio da comunidade, neste caso, ele precisa do funcionamento da civilização tecnológica.

Nesta perspectiva, hoje fala-se da Síndrome da "Arca de Noé":


ou seja, para salvar a civilização actual seria necessário salvar milhões de invenções e biliões de técnicos que as sabem utilizar e, ainda, seria preciso depois construir as redes que os põem em contacto e em colaboração. Um Noé, sua família e objectos técnicos não seriam suficientes para recriar a civilização.

Em resumo e numa palavra, hoje, o factor crítico do progresso não são heróis, nem líderes, são redes e colaboração.

No ponto de vista democrático a votação não deve centrar-se na procura de um líder, mas sim na procura de um projecto centrado em redes e colaboração.

Num modelo simples, as opções das votações oscilam em torno de dois eixos, os problemas existentes e  as soluções desejadas, cada um deles desde o polo simples até ao polo complexo
Em esquema:

Linhas de força dos projectos
A zona a vermelho, isto é, as áreas do simples, são as susceptíveis de gestão ditatorial e/ou da democracia autoritária. 
Porém, as restantes áreas, com forte componente de complexidade quer no problema, na solução ou na acção, exigem a preponderância de redes e colaboração em todo o sistema social. Neste caso, uma ditadura ou enclausuramento autoritário impedem a sua rentabilidade. É necessário uma democracia democrática ou democracia governante no pensamento de Maurice Duverger.

Qualquer votação que empurre a Democracia para a zona a vermelho do [...braço no ar e cérebro deixado no armário...], processualmente, poderá ser democracia mas, na realidade, será apenas uma fraude democrática.


IV - O consenso

Com base num estudo sobre a probabilidade das decisões por maioria - Pluralité des voix - escrito no século XVIII por Condorcet, 1785, matemático e filósofo, podemos imaginar uma votação entre dois candidatos (ou dois projectos) em duas alternativas.

1 - ALTERNATIVA simples:

Dois candidatos cujo resultado na contagem dos votos é:

[A] obtém 50% dos votos, [B] obtém 40%  e 10% são brancos/nulos.

O resultado é lógico, óbvio e claro, [A] é o eleito.


2 - ALTERNATIVA complexa:

A situação é semelhante, simplesmente existem 3 candidatos, [A], [B], e [C], em que:

[A] obtém 45% dos votos, [B] obtém 45% e [C] 10%.

Considerando-se o empate entre [A] e [B], [C] é excluído da lista, efectua-se uma 2ª volta entre [A] e [B], cujo resultado é exactamente igual ao da primeira alternativa:

[A] obtém 50% dos votos, [B] obtém 40% e 10% são brancos/nulos.

portanto [A] é eleito.

Aparentemente, é óbvio que o consenso obtido nas duas votações, a simples e a complexa, é exactamente igual.

Mas Condorcet faz uma análise mais cuidada.


Vamos supor que:

1º - os adeptos de [A] afirmam que, se este não for eleito, só aceitam [C].
Para eles a hipótese [B] é completamente insustentável.

2º - os adeptos de [B] afirmam também que, se este não for eleito, só aceitam [C].
 Para eles a hipótese [A] é completamente insustentável.

A conclusão a tirar é que a hipótese de consenso é a [C] com 100% de apoio, obtido com as 2ª escolhas de [A] (45%) + [B] (45%) + 1º escolhas [C] (10%).
Simplesmente,  [C] foi excluído na 1ª volta, de acordo com as regras eleitorais.

A fractura social anti-democrática foi democraticamente criada pelas regras eleitorais.

Esta "situação" pode parecer "ficção científica" inventada por Condorcet, simplesmente, ela parece ter renascido no Brasil, 204 anos depois, aquando da primeira eleição directa do Presidente da República desde 1960.

Na 2ª volta (1989) da Eleição Presidencial, o confronto Collor de Mello versus Lula da Silva existiu num clima de não consensos, dada a situação tensa e irredutível dos partidários de um aceitarem o outro. 
Segundo alguns analistas, qualquer que fosse o resultado, o risco de confrontos era real. Parece que, para a segunda escolha, a proposta de consensos seria um dos 20 restantes candidatos já excluídos da eleição.

A conclusão a tirar é que em sistemas eleitorais complexos, é necessário integrar na solução o máximo contentamento com o mínimo de descontentamento. As simples análises contabilísticas das quantidades de votos são demasiado simplórias para a complexidade da democracia. A par da análise quantitativa é importante não esquecer a análise qualitativa.

Será que a área discricionária que, em certas condições, a Constituição Portuguesa atribui à Presidência da República quererá, como última segurança, responder a esta questão?

V - Conclusão

Na Democracia não basta fazer votações e contabilizar resultados. Diagnósticos baseados só em análises quantitativas são raciocínios demasiado simplórios para decisão em sistemas complexos. Assim, considerando os três níveis atrás descritos, convém questionar:

1 - No plano da relação com o outro
     o resultado eleito cai fora da zona (+,+)???
2 - No plano do projecto
     o resultado bloqueia redes e reduz colaboração???
3 - No plano do consenso
     o resultado fomenta e agudiza fracturas sociais???

e tentar avaliar se ... "A votação é democrática: Tenho a certeza????"

Quando há propostas que vão responder "SIM" às três perguntas e o apoio é do tipo "braço no ar e cérebro deixado no armário", então convém analisar bem se alguém anda a tocar piano com luvas de box:


...porque nesse caso o ruído é muito... mas música não existe!!!


Continuação...

... a Democracia e a sua origem, entre o caos e a ordem. Para saber onde estamos e para onde vamos, é importante saber donde viemos. ... e assim surge o 14º post "No princípio era o caos".

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Índice do Blog
(com links para os posts já publicados)

No princípio era o caos
A viragem da civilização 
Fugindo da estupidez organizacional
A evolução aos "éssses 

Temporada 2 - Soluções?
Não guiar pelo espelho retrovisor

Morreu o consensus, viva o dissensus

A técnica do Jazz e o dissensus
E assim, co-labora ou morre

E por fim, a democracia da cumplicidade 
Aqui no futuro?

O 1º sonho

Video resumo: Nova Democracia

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